Era dessas moças que passam despercebidas, muito magra, recatada e tímida. Tinha uma beleza que poucos percebiam: cabelo liso, negro, sempre preso, cabeça sempre baixa e olhar a furto. Sempre usava vestidos que aparentava ser de uma mulher mais velha, nos pés sapatinhos de boneca ou sapatilhas, pouco falava e pouco sabia sobre tal moça.

Soube por língua alheia e bem informada, que ela, a moça em questão, vira do interior do Rio de Janeiro. O pai havia morrido há muitos anos e a mãe quis um futuro melhor para a filha. Mandou-a para a cidade tentar a sorte na casa da irmã, Dona Zulmira que tinha uma pensão, dessas que serve comida caseira e faz entrega a um pequeno número de pessoas. Parece que a moça queria ser professora, mas um comentário essa mesma língua fez:
- Pensava que a pobre era muda... Nunca “vi ela” falar. Fico imaginando a aula de uma “fessora” assim? Riu-se sozinho o pobre desdentado.

Fingiu que riu para aquela criatura que frequentava a pensão da Tia da moça, mas o nome dela ele não sabia.

Da janela onde morava a via passar com quentinhas de entrega para lá e para cá, realmente a aparência frágil da moça não condiz com seu trabalho árduo, pernas finas, tão magrinhas! Mas ia da Lapa a Praça XV, várias vezes ao dia.

Deparou-se obcecado por aquela pessoa, quem era ela? Quais seus sonhos? Seus objetivos? Qual era simplesmente o seu nome? A mente daquele homem borbulhava de indagações e a figura daquela frágil moça esmiúça-lhe os sentidos. Como bom homem de letras que era resolveu escrever seus sentimentos, mas não tinha idéia de como lhe entregar tais sentimentalidades.

No dia seguinte foi na pensão, na esperança de encontrar aquela a quem gostaria de algo mais saber, mas não a viu. Resolveu almoçar, aquele aromático almoço as 11h00min horas da manhã. As horas passavam... O incessante bater de talheres e aquele burburinho não parava. Pacientemente esperava. Um a um os clientes iam embora, e nada da moça aparecer, o silêncio já reinava e só ao fundo escutava o lavar de pratos na copa da casa.

Dona Zulmira a limpar as mesas e a olhar de “rabo de olho” para o rapaz que já estava ali há várias horas naquela posição, devia estar curiosa a senhora, foi se chegando e perguntou ao rapaz:

- Vai querer sobremesa moço?

Respondeu que não muito sem Graça, levantou-se para ir embora

Com muita intimidade a senhora perguntou para o moço:
- Você mora aqui por perto meu filho? Acho que já lhe vi por ai
- Sim, moro. Já vim aqui algumas vezes. Sabe como é, moro sozinho...
Respondeu ainda muito envergonhado.

Tomando-se de coragem perguntou para a senhora:
- A senhora tem uma sobrinha? Não a vi hoje...
- Sim, Virgínia. Foi fazer uma entrevista. Sonha em ser professora, mas ela é muito quieta, muito tímida...

Ficou mudo, o nome ecoava na sua cabeça, Virgínia... Parecia estar em outra atmosfera, Virgínia, Virgínia, Virgínia... Quando por si se deu, Dona Zulmira falava:

-Moço? Moço?

Agradeceu à senhora, e saiu desligado. Estava muito calor nesse dia, mas também estava extasiado por saber aquele nome: V-i-r-g-í-n-i-a, pisava em nuvens, e ao colocar a mão no bolso sentiu o papel dobrado da carta que não entregara. Foi quando trombou em algo e quando voltou ao mundo real viu Virgínia agachada recolhendo alguns livros no chão. Rapidamente agachou-se também e ajudou a recolher os livros, olhava para ela, mas a moça não levantava o rosto, disse-lhe então:

- Desculpa Virgínia, estava distraído.

Virgínia olhou para ele, imaginando certamente como sabia seu nome. Poucos sabiam ou tinham o trabalho de perguntar, o rosto corou-se e voltou a olhar para o chão, perguntou então a moça para o desconhecido:

- Como sabe meu nome?
-Sua tia...

Engoliu a seco e continuou nervoso:
- Sua tia disse-me seu nome, também falou da entrevista...

Visivelmente nervosa Virgínia cortou-lhe o dizer, falando baixinho:
-Minha tia fala demais e eu de menos...

Levantou-se e saiu em direção à entrada da pensão, era visível que estava com raiva de alguma coisa. Poderia ser da entrevista de emprego que fez, raiva da tia linguaruda ou do rapaz que se mostrava estranhamente interessado, ninguém nunca se mostrava interessado...

Observou-a entrar, e quando percebeu estava com um dos livros ainda na mão, como por um impulso colocou a carta de amor dentro do livro memorizou a página e gritou por Virgínia, ela virou-se e pela primeira vez pairou seu olhar sobre os dele. Eram olhos de Capitu, sentiu as pernas bambearem, olhou o contorno perfeito da boca o nariz fino e arrebitado, como conseguira esconder tanta beleza? Com a voz tremula disse-lhe:

-Página 93.

Sem nada entender agradeceu e virou as costas, acho que não percebeu que tudo aquilo era um cortejo, por certo ninguém o havia feito antes, era realmente uma moça pura, a cidade grande ainda não havia corrompido seu coração.

Inquietante foi o resto do dia, ficou imaginado se já achara a carta que havia escrito sem antes saber seu nome. Muito mal dormiu, e quando conseguiu pegar no sono o dia já amanhecia, tomou café da manhã pensando no almoço na pensão de Dona Zulmira. Queria ver Virgínia e saber se achara a carta, mesmo que não achasse iria pedir a moça em namoro, mas estava muito nervoso, não sabia se era recíproco, arquitetou tudo na sua mente...

Como fazia todos os dias observava o vai e vem das pessoas pela janela e naquele acinzentado cenário urbano uma mulher de vestido vermelho se destacava na apressada multidão. Era uma cigana, puxava a mão das pessoas, na maioria das vezes as pessoas passavam direto sem dar atenção a tal mulher. 

Saiu da janela e voltou a se arrumar, olhou vagamente para o computador lembrando-se que há dias não escrevia algo. Enquanto abotoava a camisa, passou os olhos na mesma paisagem e de novo viu o colorido da cigana e uma mão estendida. Paralisou-se, era como uma pintura, Virgínia com as mãos para a cigana, observou por segundos viu a cigana fazer muitos gestos, três passos para trás Virgínia deu, e saiu correndo no meio da multidão, perdeu-a de vista e ao fundo só escutou um estrondo e freada de carro. 

O coração dele acelerou, a respiração ofegou-se, como por impulso saiu correndo para ver o que poderia ter acontecido, temeu o pior e um nome suspirou:

- Virgínia...

Aproximava-se cada vez mais da multidão e quanto mais perto chegava menos queria ir. Parou. Não tinha coragem para se aproximar só escutava o povo falar:

- Coitada da moça! Muito jovem a pobrezinha!
- Acho que foi suicídio, jogou-se na frente do carro!

Todos falavam ao mesmo tempo, mas só uma frase ressoava nos seus ouvidos, um homem disse para o outro:
- Ela morreu, e só isso...

Ela morreu? E só isso? Nada fazia sentido em sua mente, lembrou dos três passos para trás que Virgínia deu, e repetiu o gesto, para trás ele andou e as costas ele deu. Da doce e inocente Virgínia só queria boas recordações.

Andou desnorteado, pensou em Dona Zulmira, tinha que ir lá, pois mesmo que ela já soubesse da morte da sobrinha precisava lhe contar tudo que viu, e prestar seus pêsames. No caminho para a pensão a frase ficava repetindo-se em sua mente: “Ela morreu, e só isso...”

Próximo a entrada da pensão da Dona Zulmira, ficou perplexo parado, estaria vendo coisas? Seria um fantasma? Virginia sentada em um banquinho na pequena praça em frente à entrada de casa. Ele não se moveu e a imagem de Virginia aproximava-se cada vez mais, sorrindo como ele nunca vira antes, e disse-lhe:

- Mattos? Esse é seu nome?

Respondeu apenas que sim, estava realmente tonto. Desmaiou...

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Abriu os olhos e viu Dona Zulmira olhando para ele com vinagre na mão, o cheiro do condimento ainda penetrava nas suas narinas, atordoado começou a falar desenfreado:

- Meus pêsames Dona Zulmira, eu vi tudo! Vi quando a cigana fazia gestos, vi quando ela saiu correndo, escutei o freio do carro, a batida... Não tive coragem de vê-la, não entendo por que fez isso? Eu a amava... Escrevi uma carta me declarando.

A senhora interrompeu dizendo:

-Sim ela leu meu filho, mas acho que você confundiu as coisas...
Virgínia entra no quarto e diz-lhe sorrindo:
-Está tudo bem? Eu também vi o que aconteceu. Parece que a moça suicidou-se. Foi muito triste.

Ele a olhou profundamente aliviado. Sentiu-se mal e aliviado ao mesmo tempo, uma pessoa realmente havia morrido, mas não era Virgínia. Havia entendido a frase: “Ela morreu, e só”.

Quando não é um ente querido hipocritamente fingimos sentir, mas damos graças a Deus por não ter sido ninguém que amamos. Tirou essa conclusão silenciosamente.

 Virginia contou que a cigana falou de morte e descobrimento de um amor. Achou aquilo tão mórbido que saiu correndo daquela figura sinistra, foi quando se deparou com o suicídio. Em casa achou a cartinha dentro do livro. Virou-se para Mattos e perguntou:

-Está mais calmo agora, ficou nervoso com a morte da desconhecida?
Mattos respondeu tranquilamente do mesmo jeito que escutara a frase:

-Ela morreu, e só isso... 

2 Comentários

  1. Caraca, eu li isso! Fiquei desde o titulo ansiosa para saber sobre a morte, e conforme fui lendo a historia tive certeza, assim como Mattos, que Virginia havia morrido. Simplesmente achei o conto formidavel.

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  2. Ela morreu, e só isso. Gostei da estrutura, do modo como o título e todo o enredo acabam "se juntando"nessa frase e de todo o percurso até chegar ao desfecho bem bacana.

    Estive ansioso para terminar de ler o conto, tentei por 2 vezes, mas por conta de compromissos, tive que sair...rs. Mas valeu a pena, como valeu. Tem até um "q" Rodrigueano nesse texto...rs. Percebe-se uma influência aqui e ali.

    Bj, Fabi!

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