O ônibus, a passeata e o vento levantou a saia.
Depois
de uma aula sobre Educação Indígena e muitas reflexões sobre a
causa, embarquei em um ônibus, como todo dia faço, sem nenhuma
pretensão de nada. Quase todos os lugares estavam ocupados, mas dava
para sentar e assim o fiz. A minha frente estavam dois velhinhos,
sendo um grisalho e outro com cabelos branquinhos, igual neve. No
banco ao lado, dois homens com roupa tipo uniforme de obra sujo de cimento, conversavam
sobre coisas de trabalho e no ponto seguinte, um homem com farda de
bombeiro, sentou dois bancos atrás dos homens da obra. Assim a
viajem seguiu...
Seguiu,
até parar na Praça da Bandeira. Era passeata dos professores, que
seguia em direção a Prefeitura do Rio. Um dos velhinhos, o de
cabelo mais branco, falava sobre o direito das pessoas se
manifestarem, sobre o ranking da educação e a vergonhosa posição
que o país desfrutava: penúltima posição. Ele falava com muito
senso crítico e me surpreendeu por uma visão tão atual, defendendo
inclusive os professores e as manifestações. Enquanto o ônibus
dava uma volta para “cortar” o engarrafamento, os dois caras da
obra, falavam de um cara do trabalho deles que não aprendia a mexer
numa tal máquina, não aceitava ser ajudado e sobre como são
"vadias e putas" as mulheres que trabalham junto com
homens.
-Eu
sei mexer, trabalho muitos anos, posso dizer que sei muito, mas ele
não quer que eu ajude.
-É
o cara é burro mesmo! “Cheidi”coisinha... acho que ele não sabe
ler direito.
-E
a Valdinha, hein? Tá namorando um corno lá, tu tá "sabeno"?
-Namorando?
Aahahahhahahaha (riso alto e maquiavélico)!!! Aquilo é uma
piranha...
O
ônibus para, anda lentamente. O cara da última fala continua,
apontando a passeata:
-Pra
quê isso? Passeata nada rapá! Tem que ficar em casa, na piscina,
tomando cerveja. Bando de sem noção! Não quer trabalhar, fica em
casa!
-Mas
é bom. Cheidi mulé, oia pra isso... Muita mulé!
O
velhinho olhou para o cara, com sangue nos olhos. Eu, contei até
dez, minha tática infalível e o cara ainda olhou para mim e
perguntou:
-Né
não colega?
Em 1
segundo e alguns milésimos seguintes, dez mil respostas passaram
pela minha cabeça. Imaginei respostas filosóficas, matemáticas,
geométricas, isométricas, milimétricas... Imaginei um rico VAI
TOMAR NO CU, imaginei perguntas mirabolantes, imaginei dizer sou
PEDAGOGA, mas acho que ele não ia ligar nome a profissão/situação
e por fim, apenas um seco:
-Não,
não é não...
Ele
me olhou com cara de nojo e continuou a conversar com o “amigo” a
seu lado.
Enquanto
o bombeiro falava muito alto coisas ao telefone celular, uma mulher,
lá na frente do ônibus, esbravejava coisas como atrapalhar a vida
dela, onde o ônibus ia parar e blá, blá, blá... Um outro coroa,
lá da frente também, resolveu zoar:
-
Aê! Vai pra passeata! Vai protestar...
-
O senhor que vá para a puta que pariu!
Risadas.
Faltou-me a coragem dela para fazer a mesma coisa com o cara sujo de
cimento. O coroa continuava a zoar a dona revoltada, mas era um zum
zum zum, mais buzinas, os caras da obra falando, os velhinhos
discutindo e o bombeiro brigava feio com alguém no telefone. Minha
audição se voltou a ele, que exigia um documento assinado por sei
lá quem. Ele se levantou, se preparando para saltar e disse alto ao
telefone, deixando o ônibus em silêncio (todos, inclusive eu,
exercendo o espírito da fofoca, comum a raça humana):
-
Diz pra esse cara que vou processar ele! Meu telefone tá gravando a
conversa e ele me chamou de CRIOLO! Diz para ele que sou NEGRO!
Ora,
fiquei pensando se a palavra crioulo era tão ofensiva assim. Mas
logo me censurei, devia ser, pois o bombeiro estava muito bravo.
Fiquei filosofando sobre ofensas, sobre ser negro, branco, negão,
amarelo, crioulo, branquelo, índio... Não, índio não.
Dificilmente alguém vira e diz “sou índio”. Eu nunca ouvi! No
máximo “sou descendente de índio. Minha tataravó era índia e
meu tataravó era Holandês e caçou ela na mata” (kkkkkk!!!!).
Afinal, retomando ao início do texto, vinha de uma aula de educação
indígena, estava com essas questões ferventes na cabeça e poderia
ficar aqui, escrevendo páginas sobre o que pensei, sobre a tanguinha
do índio, mas deixa pra lá, ainda estava no ônibus novela, onde
tudo acontecia.
Desceram
no mesmo ponto, o bombeiro, que ainda brigava ao telefone, a coroa
reclamona e os caras da obra, incrível! Mas é verdade, só ficou os
velhinhos anarquistas, que torciam o pescoço, dentro do ônibus,
juntamente com os caras da obra sujos de cimento e o bombeiro, já do
lado de fora do ônibus, para ver uma mulher, que tinha a saia levantada pelo
vento, andando na calçada da Presidente Vargas. Eu ri. Homens são
homens, independente de idade, cor do cabelo, cor da pele, opinião
política ou profissão. Desci do ônibus com a certeza que aquilo
tudo, daria uma crônica. E deu...
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